quinta-feira, 11 de junho de 2015

Análise Casa Grande & Senzala


" Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro."

Mestre Gilberto Freyre... Escritor pernambucano, morador de Apipucos, no Recife. Era descendente de senhores de engenho. Conhecia bem os casarões...
Em 1933, após exaustiva pesquisa em arquivos nacionais e estrangeiros, Gilberto Freyre publica Casa-Grande & Senzala, um livro que revoluciona os estudos no Brasil, tanto pela novidade dos conceitos quanto pela qualidade literária.
Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus próprios antepassados a história do homem brasileiro. As plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do cruzamento das três raças: índios, africanos e portugueses.
Em Casa-Grande & Senzala, o escritor exprime claramente o seu pensamento. Ele diz: "o que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada" . Os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição. A relação entre brancos e mulheres de cor foi a de vencedores e vencidos.

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"Casa-Grande & Senzala foi a resposta à seguinte indagação que eu fazia a mim próprio: o que é ser brasileiro? E a minha principal fonte de informação fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos estímulos."

Havia tempos Gilberto Freyre procurava escrever sobre o ser brasileiro. Pressões políticas e familiares o levaram, entre 1930 e 1932, a viver o que chamou de "a aventura do exílio". Partiu para a Bahia e pesquisou as coleções do Museu Afro-Brasileiro Nina Rodrigues e a arte das negras quituteiras na decoração de bolos e tabuleiros. Observou que a culinária baiana era neta da velha cozinha das casas-grandes.
Depois da Bahia partiu para a África e Portugal. Iniciou em Lisboa as pesquisas e estudos que sedimentariam o livro Casa-Grande & Senzala. De Portugal foi, como professor visitante, para a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde viajou pelo Sul e pôde constatar a existência, durante a colonização americana, do mesmo tipo de regime patriarcal encontrado no nordeste brasileiro.

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"Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, desviou-se dessa rota, parece já baseado em estudos portugueses, e identificou uma terra que ficou sendo conhecida como Brasil. Mas essa terra não foi imediatamente auto-conhecida. Vinham sendo acumulados estudos sobre ela... mas faltava um estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico, fosse... um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a primeira grande tentativa nesse sentido representou um serviço de minha parte ao Brasil."

Durante o período de estudos na universidade americana, o escritor elaborou uma linha de pensamento que diferenciava raça e cultura, separava herança cultural de herança étnica; trabalhou o conceito antropológico de cultura como o conjunto dos costumes, hábitos e crenças do povo brasileiro.

"Gilberto Freyre diz que Franz Boas foi a figura de mestre que nele ficou maior impressão, porque foi com Franz Boas que ele aprendeu a distinguir raça de cultura, e nessa distinção ele se baseou para escrever Casa-Grande & Senzala. Agora, o conceito de antropologia de Freyre era muito mais amplo, ele partiu para uma interpretação global do povo brasileiro. É uma história ao mesmo tempo econômica, religiosa, folclórica, sociológica."
Édson Nery da Fonseca, historiador (Olinda, PE)

"Quando, em 1532, se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical. Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio, e mais tarde de negro, na composição."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Porto PortuguesPortugal, um país largamente marítimo, recebia sempre povos de todos os lugares do mundo. Seus portos eram rota de comércio e de migrações. O contato com estrangeiros estimulava, no povo português, tendências cosmopolitas, imperialistas e comerciais. Na Península Ibérica as raças se misturavam havia milênios. O encontro das culturas árabes e romana impregnava a moral, a arte, a economia e a vida do português. Os árabes - excelentes técnicos navais - e os judeus - financistas e com altos cargos de administração, no conselho real -, emprestavam conhecimento e dinheiro para o empreendimento das navegações e dos descobrimentos. A burguesia comercial ganhava mais poder que a aristocracia territorial portuguesa e buscava no além-mar terras e riquezas nunca exploradas. 

Além da mobilidade, o português tinha a capacidade de se misturar facilmente com outras raças. Os homens vinham sem família, sozinhos. Chegavam carentes de contato humano e começavam a se reproduzir primeiro com as índias e depois com as negras escravas. Era preciso povoar o território. No momento em que embarcou na aventura ultramarina, Portugal tinha três milhões de habitantes. O Brasil era imenso; então, como povoar esse território?
"Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades que fossem de fé católica. Temia-se no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar aquela solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto com a religião católica. Essa solidariedade manteve-se entre nós esplendidamente através de toda a nossa formação colonial."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Vista de OlindaFoi aqui que chegou...dia 02 de março de 1535...um português chamado Duarte Coelho Pereira, viu essa bela vista e deu uma exclamação:Oh! linda situação para se construir uma vila. Por isso que a cidade se chama Olinda. Antigamente chamava Marino Caetês, habitada pelos índios. Em Pernambuco e no Recôncavo baiano, a colonização se desenvolvia à sombra das grandes plantações de cana-de-açúcar e das casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, longe das cabanas de aventureiros e do extrativismo predatório.
casa grande do engenho"A casa-grande do engenho que o colonizador começou, ainda no século XVI, a levantar no Brasil - grossas paredes de taipa ou de pedra e cal, telhados caídos num máximo de proteção contra o sol forte e as chuvas tropicais - não foi nenhuma reprodução das casas portuguesas, mas expressão nova do imperialismo português. A casa-grande é brasileirinha da silva."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Num processo de equilíbrio de antagonismos, o branco e o negro se misturavam no interior da casa-grande e alteravam as relações sociais e culturais, criando um novo modo de vida no século XVI. As relações de poder, a vida doméstica e sexual, os negócios e a religiosidade forjavam, no dia-a-dia, a base da sociedade brasileira.
A casa-grande abrigava uma rotina comandada pelo senhor de engenho, cuja estabilidade patriarcal estava apoiada no açúcar e no escravo. O suor do negro ajudava a dar aos alicerces da casa-grande sua consistência quase de fortaleza. Ela servia de cofre e de cemitério. Sob seu teto viviam os filhos, o capelão e as mulheres, que fundamentariam a colonização portuguesa no Brasil. Embora diretamente associada ao engenho de cana e ao patriarcalismo nortista, a casa-grande não era exclusiva dos senhores de engenho. Podia ser encontrada na paisagem do sul do país, nas plantações de café, como uma característica da cultura escravocrata e latifundiária do Brasil.
O clima tropical e as formas agressivas de vida vegetal e animal impossibilitavam a implantação de uma cultura agrícola, nos moldes do costume europeu. O português teve então de mudar seus hábitos alimentares. A mandioca substituía o trigo; no lugar das verduras, o milho; e as frutas davam um colorido novo à mesa do colonizador. Mas sua dieta ficava empobrecida, devido à ausência de leite, ovos e carne, que só apareciam em datas especiais, festas e comemorações. A terra foi usada para o cultivo da cana em detrimento da pecuária e da cultura de alimentos, o que provocou a apatia, a falta de robustez e a incapacidade para o trabalho. Males geralmente atribuídos à mestiçagem. Os portugueses não traziam para o Brasil nem separatismos político, nem divergências religiosas, e não se preocupavam com a pureza da raça. Assim o país se formava. E a unidade dessa grande extensão territorial com profundas diferenças regionais, garantida muitas vezes com o uso da força, aconteceu devido à uniformidade da língua e da religião.
ritual indigenaA Igreja desenvolvia planos ambiciosos de evangelização da América Latina, toda ocupada por países de tradição católica. Nessa quase cruzada no Novo Mundo, os padres jesuítas desempenhavam um papel importante na tentativa de implantar uma sociedade estruturada com base na fé católica. Para catequizar os índios, os jesuítas decidiram vesti-los e tirá-los de seu hábitat. Já o senhor de engenho tentava escravizá-los. Nos dois casos, o resultado era o extermínio e a fuga dos primitivos habitantes da terra para o interior.

"Os portugueses, além de menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis e menos estritos que os ingleses nos preconceitos de cor e de moral cristã, vieram defrontar-se na América com uma das populações mais rasteiras do continente... Uma cultura verde e incipiente, sem o desenvolvimento nem a resistência das grandes semicivilizações americanas, como os Incas e os Astecas."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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"O ambiente em que começou a vida brasileira foi de grande intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua. Os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé em carne."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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A sociedade brasileira, entre todas da América, era a que se formava com maior troca de valores culturais. Havia um aproveitamento de experiências dos indígenas pelos colonizadores. Mesmo quando inimigo, o índio não provocava no branco uma reação que levasse a uma política deliberada de extermínio, como a que ocorria no México e Peru. A reação dos índios ao domínio do colonizador era quase contemplativa. O português usava o homem para o trabalho e a guerra, principalmente na conquista de novos territórios, e a mulher para a geração e formação da família. Esse contato provocava o desequilíbrio das relações do índio com o seu meio ambiente. 
indio pataxó"Eu sou índio da tribo pataxó. Eu aprendi com meus pais a fazer artesanato. A gente faz cocares..., a gente vive só disso, de artesanato, a não ser no inverno, quando a gente tem que pescar mucussu. Mucussu é peixe. A gente planta mandioca para fazer cuiúna, feijão e arroz. A gente fala em pataxó: jocana baixu significa mulher bonita e jocana baixa é mulher feia."
Paturi, índio pataxó (Coroa Vermelha, BA) 


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"A grande presença índia no Brasil não foi a do macho, foi a da fêmea. Esta foi uma presença decisiva, a mulher índia tomou-se de amores pelo português, talvez até por motivos fisiológicos, porque, segundo pude apurar quando escrevi Casa Grande & Senzala, as sociedades ameríndias ou índias, inclusive a brasileira, eram sociedades que precisavam de festivais como que orgiásticos para provocar nos homens, nos machos, desejos sexuais. O que há de acentuar é o grande papel da índia fêmea na formação brasileira, essa índia fêmea não só através do relacionamento mencionado sexual, mas através do papel social que ela começou a desempenhar magnificamente, tornou-se uma figura capital na formação brasileira."

"Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influência de tão remotas avós. Ela nos deu, ainda, a rede em que se embalaria o sono ou a volúpia do brasileiro."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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A união do português com a índia havia gerado os mamelucos que atuavam como bandeirantes e, junto com os índios, formavam a muralha movediça da fronteira colonial. O mameluco e o índio, que excediam o português em mobilidade, atrevimento e ardor guerreiro; que defendiam o patrimônio do senhor de engenho contra o ataque de piratas estrangeiros, nunca firmaram as mãos na enxada. Os pés de nômades não se fixavam na plantação da cana-de-açúcar.
"Essa arte é descendência dos índios, né! Aí nós somos seguidores já dos índios. A gente ficou fazendo as panelas de barro, que eu aprendi com meu pai. Meu pai já trabalhava, aí eu fiquei trabalhando. Agora meus filhos também trabalham na mesma arte."
Zé Galego, artesão (Caruaru, PE).

Dos costumes dos primitivos habitantes da terra eram as relações sexuais e de família, a magia e a mítica que marcavam a vida do colonizador. A poligamia e a sexualidade da índia iam ao encontro da voracidade do português, ainda que a vida sexual dos indígenas não se processasse tão à solta quanto o relatado pelos viajantes que aqui estiveram. Para as tribos mais primitivas, a união do macho com a fêmea tinha época; o costume de oferecer mulheres aos hóspedes era prática de hospitalidade, quase um ritual. A mulher nativa resgatava o sonho da ninfa, que se banhava no rio e penteava os longos cabelos negros. Uma imagem deixada pela invasão moura na Península Ibérica e adormecida no inconsciente do português.
"Figura vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os imperialistas modernos. Assemelha-se nuns à do inglês; noutros, à do espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do contemporizador. Nem idéias absolutas, nem preconceitos inflexíveis. ...Um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água..."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Engenho PernambucanoOs portugueses davam uma contribuição criativa ao novo mundo através da produção de açúcar. E implantavam um sistema econômico que aprenderam com os mouros durante a ocupação da Península Ibérica. Os mouros, de grande tradição agrícola, introduziram a laranjeira, o limoeiro e a tangerina e implantaram a tecnologia do fabrico do açúcar em Portugal. O engenho mouro é avô do engenho pernambucano.
Essa contribuição criativa é que diferenciava o português do holandês e do francês, que para cá traziam apenas aperfeiçoamentos tecnocráticos. O choque das duas culturas, a européia e a ameríndia, no Brasil colônia, se dava mais lentamente, não por meio da guerra, mas nas relações entre homem e mulher, mestre e discípulo. A Igreja ganhava no Brasil capelas simples dentro do complexo arquitetônico da casa-grande. Lá morava o capelão, que dela tirava seu sustento. E essa mesma Igreja, através dos jesuítas, partia maciça e indiscriminadamente para a catequização dos índios.

O animalismo e a magia impregnavam a vida dos índios: desde o berço, quando a mãe entoava cantigas de ninar e, já meninos, nas brincadeiras de imitar animais. Entre os jogos infantis dos curumins, o jogo de cabeçada com a bola de borracha ficava como contribuição da cultura indígena. Apesar de crescerem livres de castigos corporais e de disciplina paterna, os meninos estavam sempre em contato com rituais da vida primitiva. Na puberdade eram levados para o baíto, a casa secreta dos homens, onde passavam por provas de iniciação à fase adulta. Para os padres da Companhia de Jesus, os índios acreditavam em tudo e aprendiam e desaprendiam os ensinamentos rapidamente. Havia uma enorme quantidade de aldeias espalhadas pela floresta, que falavam diferentes línguas. Era preciso unificar as tribos para poder pregar a doutrina católica. O menino indígena servia de intérprete aos jesuítas, que aprendiam com ele as primeiras palavras em tupi. Os padres puderam então escrever uma gramática, unificando a língua dos Brasis. Estava criando o tupi-guarani.
Tanto a Igreja quanto o senhor de engenho fracassavam nos esforços de enquadrar o índio no sistema de colonização que iria criar a economia brasileira. Fora de seu hábitat natural, o índio não se adaptava como escravo: morria de infecções, fome e tristeza. Para suprir a deficiência da mão-de-obra escrava, os senhores de engenho de Pernambuco e do Recôncavo baiano começavam a importar negros caçados na África. Agora, as escravas negras substituíam as cunhãs tanto na cozinha como na cama do senhor. Na agricultura, a presença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no mercado internacional. O Brasil, esquecido por quase duzentos anos, despertava finalmente o interesse do Reino de Portugal.
negro muçulmanoEntre os africanos que vinham para o Brasil, eram os negros muçulmanos, de cultura superior não só à dos índios como também à da maioria de colonos brancos, que aqui chegavam e viviam quase sem nenhuma instrução, que para escrever uma carta necessitava da ajuda do padre-mestre. O movimento malê da Bahia, em 1835, foi considerado um desabafo da cultura adiantada, que era oprimida por outra menos nobre. Contava-se que os revoltosos sabiam ler e escrever em alfabeto desconhecido. Eram negros que liam e escreviam em árabe.
"Pode-se juntar à superioridade técnica e de cultura dos negros sua predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas regiões quentes. Seu gosto pelo sol. Sua energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta tropical."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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O Brasil importava da África não somente o animal de tração que fecundou os canaviais, mas também técnicos para as minas, donas de casa para os colonos, criadores de gado e comerciantes de panos e colheita de cafésabão.Os negros vindos das áreas de cultura africana mais adiantada eram um elemento ativo, criador e pode-se dizer nobre na colonização do Brasil, degradados apenas pela condição de escravos. O negro escravo e a cana-de-açúcar fundamentavam a colonização aristocrática e a estrutura básica do mundo dos coronéis se repetiria nos ciclos do ouro e do café, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, com o mesmo fundamento: a ocupação da terra.
 Na sociedade escravocrata e latifundiária que se formava, os valores culturais e sociais se misturavam à revelia de brancos e negros. Sua convivência diária favorecia o intercâmbio de culturas e gerava sadismos e vícios, que influenciavam a formação do caráter do brasileiro. A escravatura degradava senhores e escravos.
"Na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça de qualquer povo se fundam, parte nas sua instituições religiosas e políticas, e parte na filosofia, por assim dizer doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o Brasil quando o consideramos debaixo desses dois pontos de vista?"
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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O senhor de engenho, um homem extremamente rico e poderoso, passava a maior parte do tempocanavialdeitado na rede, cochilando e copulando. Quando saía, a passeio ou em viagem, o negro era seus pés e mãos. O sinhô não precisava levantar-se da rede para dar ordens aos negros, bastava gritar. Os negros veteranos, os ladinos, iniciavam os recém-chegados na moral e nos costumes dos brancos. Ensinavam a língua e orientavam nos cultos religiosos sincretizados. Eram ainda os ladinos que ensinavam aos boçais a técnica e a rotina na plantação da cana e no fabrico do açúcar. 

A escravidão desenraizava o negro de seu meio social e desfazia seus laços familiares. Além dos trabalhos forçados, ele era usado como reprodutor de escravos: era preciso aumentar o rebanho humano do senhor de engenho. As crias nascidas eram logo batizadas e ainda assim consideradas gente sem alma. A Igreja, esteio dos poderosos, agia da mesma forma no tratamento dado ao negro. A mulher escrava fazia a ponte entre a senzala e o interior da casa-grande e representava o ventre gerador. As negras mais bonitas eram escolhidas pelo sinhô para serem concubinas e domésticas. Objeto dos desejos sádicos dos homens, do senhor de engenho ao menino adolescente, a negra sofria por parte da mulher branca os castigos mais variados. Se a beleza dos seus dentes incomodava a desdentada sinhá, esta mandava arrancá-los. A escrava adoçava a boca do senhor e recebia chicotadas à mando da senhora, mas cumpria as tarefas que normalmente estariam destinadas à mãe de família. As damas da sociedade se casavam entre os doze e os quinze anos com homens muito mais velhos. O conhecimento que tinham da vida de casada, os acontecimentos de fora do engenho e outras histórias - nem sempre românticas - elas ouviam da boca das mucamas. As sinhazinhas sentadas à mourisca, tecendo renda ou deitadas na rede e as escravas a lhes catar piolho ou fazendo cafuné. Cedo se casavam e cedo morriam por causa de sucessivos partos ou se tornavam matronas aos dezoito anos. O ócio e a vida reclusa faziam das sinhás mulheres amarguradas. E ignorantes: era raro encontrar uma que soubesse ler e escrever. A presença da negra na vida do menino vinha desde o berço, quando ela o amamentava e acalentava o seu sono. A ama de leite ensinava as primeiras palavras num português errado, o primeiro "pai nosso", o primeiro "oxente", e amaciava com a própria boca a comida do menino de engenho. Os sofrimentos da primeira infância - castigos por mijar na cama e purgante uma vez por mês os meninos descontariam tornando-se pequenos diabos. O moleque, o pequeno escravo, companheiro do sinhozinho em brincadeiras e aventuras, servia também de saco de pancadas. Tornava-se objeto do prazer mórbido de tratar mal os inferiores e os animais, prazer de todo menino brasileiro filho do sistema escravocrata. Criança mimada e educada para ser o herdeiro todo-poderoso, o menino desde o início da adolescência era entregue aos cuidados eróticos da fulô
"Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Os senhores de engenho casavam-se sucessivas vezes, sempre preferindo as jovens sobrinhas; exagerava-se, então, o sentimento da propriedade privada. As heranças eram disputadas por filhos legítimos e parentes próximos. Aos filhos bastardos, gerados nas casa-grande e paridos na senzala, restava a tolerância do senhor, que ao morrer os libertava. Nomes e sobrenomes se confundiam: os escravos mais próximos, que ganhavam a simpatia do senhor, conseguiam adotar o sobrenome dos brancos. Na tentativa de ascensão social, os negros imitavam dos senhores as formas exteriores de superioridade. Mas muitos nomes ilustres de senhores brancos vinham dos apelidos indígenas e africanos das propriedades rurais - a terra recriava os nomes dos proprietários à sua imagem e semelhança.dança

A música, o canto e a dança dos escravos tornavam a casa-grande mais alegre. A risada do negro quebrava a melancolia e o silêncio infinito do senhor de engenho. As mães negras e as mucamas, aliadas aos meninos, às moças das casas-grandes e aos moleques, corrompiam o português arcaico ensinado pelos jesuítas aos filhos do senhor. A nova fala brasileira não se conservava fechada nas salas de aula das casas-grandes, nem se entregava de todo à maior espontaneidade de expressão da senzala. Mas o modo carinhoso do brasileiro colocar os pronomes: me diga, me espere... vem do africano. Também do seu modo de falar ficaram as formas diminutivas: benzinho, nézinho, inhozinho.

Era um novo jeito de falar, um novo jeito de andar, um novo jeito de comer... A culinária da senzala aproveitava as sobras de carnes da casa-grande, usava o aipim indígena e as verduras, misturava aos temperos africanos, principalmente o dendê e a pimenta malagueta. Surgiam a feijoada, a farofa, o quibebe, o vatapá. Alimentos que combinavam com a dureza do trabalho no cativeiro. As crenças e magias trazidas pelos portugueses eram transformadas em feitiçaria nas mãos dos africanos. Aos negros feiticeiros recorriam os senhores brancos idosos a procura de afrodisíacos; as jovens sinhás, que não conseguiam engravidar; e as belas mucamas, que aprendiam a receita do café mandingueiro, um filtro amoroso feito com café bem forte, muito açúcar e sangue de mulata.
santo antonioNa religião conviviam a cultura do senhor e a do negro. O catolicismo praticado aqui era uma religião doce, doméstica, de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro. Nasciam então as religiões afro-brasileiras: São Jorge é o orixá Ogum e Nossa Senhora é Iemanjá. 


"Esse terreiro tem 110 anos. A minha avó era descendente de escravos. Tinha uma aldeia que se chamava Catongo. Nessa aldeia ela também cultivava os orixás, quando chegavam assim os escravos chicoteados de outros lugares, fazendas, engenhos, essas coisas. Aí ela curava com aquelas difusões de ervas, né, aqueles remédios das folhas, e curava esses escravos, que ficavam gratos e acabavam ficando com ela. Quer dizer, ela era assim uma espécie de protetora desses escravos. E a minha mãe falava que era uma senzala, onde ela abrigava esses escravos." 

Ilza R.P. Santos, mãe-de-santo (Ilhéus, BA) (??)

"Não foi só de alegria a vida dos negros escravos dos ioiôs e das iaiás brancas. Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de muitos. O banzo - a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas. Não morreram, mas ficaram penando."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Os negros, muitos agora, libertos pela alforria, pela revolta ou pelas fugas, unidos nos quilombos, lutavam pelo fim da escravidão. Aliavam-se aos ideais libertários os filhos de poderosos senhores de engenho que se tornavam abolicionistas por motivos econômicos, humanitários ou, simplesmente, pelo apego que tinham às suas mães de leite.

" Os brancos diziam que em nenhum país do mundo essa nefanda instituição foi tão doce como no Brasil. Agora não me passa pela cabeça - não deve passar pela cabeça de ninguém - que essa nefanda instituição, como os próprios brancos chamavam a escravidão, que ela pudesse ser doce em algum lugar. Ela só pode ser doce da perspectiva de quem estivesse na casa-grande e não na perspectiva de quem estivesse na senzala." 
Florestan Fernandes, cientista social.

Em 1984, numa de suas últimas entrevistas, o escritor Gilberto Freyre resumia o seu pensamento sobre a situação presente do negro, lembrando o abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco:

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"O problema é que a abolição da escravatura, embora tenha sido fato notável na história da formação brasileira, foi muito incompleta."

  Com a abolição, os problemas do negro estariam apenas começando. Mas quem se interessou por isso? Ninguém se interessou. O negro livre deixou as fazendas e os engenhos e foi inchar as periferias das cidades. Abandonado, constituiu-se num sub-brasileiro.

Maria Madalena
"Todo mundo... não quer se encontrar com os pretos,
não quer, só quer se ligar aos brancos. Mas isso naquela época a Princesa Isabel libertou! Cabou-se, né! esse negócio de não querer se encontrar com o negro.
Porque tristes dos brancos se não fosse o sangue do negro."

Maria Madalena Correia, cantora (Ilha de Itamaracá, PE).

Machado de Assis - Dramaturgo

O PROTOCOLO

Comédia em um ato

Representada pela primeira vez no Ateneu Dramático em novembro de 1862 -

PERSONAGENS

Pinheiro - Sr. Cardoso
Venâncio Alves - Sr. Pimentel
Elisa - Sra. D. Maria Fernanda
Lulu - Sra. D. Jesuína Montani

Atualidade


EM CASA DE PINHEIRO
Sala de visitas

CENA I

Elisa, Venâncio Alves

ELISA - Está meditando?
VENÂNCIO (como que acordando) - Ah! perdão!
ELISA - Estou afeita à alegria constante de Lulu, e não posso ver ninguém triste.
VENÂNCIO - Exceto a senhora mesma.
ELISA - Eu!
VENÂNCIO - A senhora!
ELISA - Triste, por que, meu Deus?
VENÂNCIO - Eu sei! Se a rosa dos campos me fizesse a mesma pergunta, eu responderia que era falta de orvalho e de sol. Quer que lhe diga que é falta de... de amor?
ELISA (rindo-se) - Não diga isso!
VENÂNCIO - Com certeza, é.
ELISA - Donde conclui?
VENÂNCIO - A senhora tem um sol oficial e um orvalho legal que não sabem animá-la. Há nuvens...
ELISA - É suspeita sem fundamento.
VENÂNCIO - É realidade.
ELISA - Que franqueza a sua!
VENÂNCIO - Ah! é que o meu coração é virginal, e portanto sincero.
ELISA - Virginal a todos os respeitos?
VENÂNCIO - Menos a um.
ELISA - Não serei indiscreta: é feliz.
VENÂNCIO - Esse é o engano. Basta essa exceção para trazer-me um temporal. Tive até certo tempo o sossego e a paz do homem que está fechado no gabinete sem se lhe dar da chuva que açoita as vidraças.
ELISA - Por que não se deixou ficar no gabinete?
VENÂNCIO - Podia acaso fazê-lo? Passou fora a melodia do amor; o coração é curioso e bateu-me que saísse; levantei-me, deixei o livro que estava lendo; eraPaulo e Virgínia! Abri a porta e nesse momento a fada passava.  (Reparando nela). Era de olhos negros e cabelos castanhos.
ELISA - Que fez?
VENÂNCIO - Deixei o gabinete, o livro, tudo, para seguir a fada do amor!
ELISA - Não reparou se ela ia só?
VENÂNCIO (suspirando) - Não ia só!
ELISA (em tom de censura) - Fez mal.
VENÂNCIO - Talvez. Curioso animal que é o homem! Em criança deixa a casa paterna para acompanhar os batalhões que vão à parada; na mocidade deixa os conchegos e a paz para seguir a fada do amor; na idade madura deixa-se levar pelo deus Momo da política ou por qualquer outra fábula do tempo. Só na velhice deixa passar tudo sem mover-se, mas... é porque já não tem pernas!
ELISA - Mas que tencionava fazer se ela não ia só?
VENÂNCIO - Nem sei.
ELISA - Foi loucura. Apanhou chuva!
VENÂNCIO - Ainda estou apanhando.
ELISA - Então é um extravagante.
VENÂNCIO - Sim. Mas um extravagante por amor...  Ó poesia!
ELISA - Mau gosto!
VENÂNCIO - A Sra. é a menos competente para dizer isso.
ELISA - É sua opinião?
VENÂNCIO - É opinião deste espelho.
ELISA - Ora!
VENÂNCIO - E dos meus olhos também.
ELISA - Também dos seus olhos?
VENÂNCIO - Olhe para eles.
ELISA - Estou olhando.
VENÂNCIO - O que vê dentro?
ELISA - Vejo... (Com enfado) Não vejo nada!
VENÂNCIO - Ah! está convencida!
ELISA - Presumido!
VENÂNCIO - Eu! Essa agora não é má!
ELISA - Para que seguia quem passava quieta pela rua? Supunha abrandá-la com as suas mágoas?
VENÂNCIO - Acompanhei-a, não para abrandá-la, mas para servi-la; viver do rasto de seus pés, das migalhas dos seus olhares; apontar-lhe os regos a saltar, apanhar-lhe o leque quando caísse...  (Cai o leque a Elisa. Venâncio Alves apressa-se a apanha-o e entrega-lho). Finalmente...
ELISA - Finalmente... fazer profissão de presumido!
VENÂNCIO - Acredita deveras que o seja?
ELISA - Parece.
VENÂNCIO - Pareço, mas não sou. Presumido seria se eu exigisse a atenção exclusiva da fada da noite. Não quero! Basta-me ter coração para amá-la, é a minha maior ventura!
ELISA - A que pode levá-lo esse amor?  Mais vale sufocar no coração a chama nascente do que condená-la a arder em vão.
VENÂNCIO - Não; é uma fatalidade! Arder e renascer, como a fênix, suplício eterno, mas amor eterno também.
ELISA - Eia! Ouça uma... amiga. Não dê a esse sentimento tanta importância. Não é a fatalidade da fênix, é a fatalidade... do relógio. Olhe para aquele. Lá anda correndo e regulando; mas se amanhã não lhe derem corda, ele parará. Não dê corda à paixão, que ela parará por si.
VENÂNCIO - Isso não!
ELISA - Faça isso... por mim!
VENÂNCIO - Pela senhora! Sim... não...
ELISA - Tenha ânimo!


CENA II

Venâncio Alves, Elisa, Pinheiro

PINHEIRO (a Venâncio) - Como está?
VENÂNCIO - Bom. Conversávamos sobre coisas da moda. Viu os últimos figurinos? São de apurado gosto.
PINHEIRO - Não vi.
VENÂNCIO - Está com um ar triste...
PINHEIRO - Triste, não; aborrecido... É a minha moléstia do domingo.
VENÂNCIO - Ah!
PINHEIRO - Ando a abrir e fechar a boca; é um círculo vicioso.
ELISA - Com licença.
VENÂNCIO - Oh! minha senhora!
ELISA - Eu faço anos hoje; venha jantar conosco.
VENÂNCIO - Venho. Até logo.


CENA III

Pinheiro, Venâncio Alves

VENÂNCIO - Anda então em um círculo vicioso?
PINHEIRO - É verdade. Tentei dormir, não pude; tentei ler, não pude. Que tédio, meu amigo!
VENÂNCIO - Admira!
PINHEIRO - Por que?
VENÂNCIO - Porque não sendo viúvo nem solteiro...
PINHEIRO - Sou casado...
VENÂNCIO - É verdade.
PINHEIRO - Que adianta?
VENÂNCIO - É boa! adianta ser casado. Compreende nada melhor que o casamento?
PINHEIRO - O que pensa da China, Sr. Venâncio?
VENÂNCIO - Eu? Penso...
PINHEIRO - Já sei, vai repetir-me o que tem lido nos livros e visto nas gravuras; não sabe mais nada.
VENÂNCIO - Mas as narrações verídicas...
PINHEIRO - São minguadas ou exageradas. Vá à China, e verá como as coisas mudam tanto ou quanto de figura.
VENÂNCIO - Para adquirir essa certeza não vou lá.
PINHEIRO - É o que lhe aconselho; não se case!
VENÂNCIO - Que não me case?
PINHEIRO - Ou não vá à China, como queira. De fora, conjecturas, sonhos, castelos no ar, esperanças, comoções... Vem o padre, dá a mão aos noivos, leva-os, chegam às muralhas...  Upa! estão na China! Com a altura da queda fica-se atordoado, e os sonhos de fora continuam dentro: é a lua de mel; mas, à proporção que o espírito se restabelece, vai vendo o país como ele é; então poucos lhe chamam Celeste Império, alguns infernal império, muitos purgatorial império!
VENÂNCIO - Ora, que banalidade! E que sofisma!
PINHEIRO - Quantos anos tem, Sr. Venâncio?
VENÂNCIO - Vinte e quatro.
PINHEIRO - Está com a mania que eu tinha na sua idade.
VENÂNCIO - Qual mania?
PINHEIRO - A de querer acomodar todas as coisas à lógica, e a lógica a todas coisas. Viva, experimente e convencer-se-á de que nem sempre se pode alcançar isso.
VENÂNCIO - Quer-me parecer que há nuvens no céu conjugal?
PINHEIRO - Há. Nuvens pesadas.
VENÂNCIO - Já eu as tinha visto com o meu telescópio.
PINHEIRO - Ah! se eu não estivesse preso...
VENÂNCIO - É exageração de sua parte. Capitule, Sr. Pinheiro, capitule. Com mulheres bonitas é um consolo capitular. Há de ser o meu preceito de marido.
PINHEIRO - Capitular é vergonha.
VENÂNCIO - Com uma moça encantadora?...
PINHEIRO - Não é uma razão.
VENÂNCIO - Alto lá! Beleza obriga.
PINHEIRO - Pode ser verdade, mas eu peço respeitosamente licença para declarar-lhe que estou com o novo princípio de não-intervenção nos Estados. Nada de intervenções.
VENÂNCIO - A minha intenção é toda conciliatória.
PINHEIRO - Não duvido, nem duvidava. Não veja no que disse injúria pessoal. Folgo de recebê-lo e de contá-lo entre os afeiçoados de minha família.
VENÂNCIO - Muito obrigado. Dá-me licença?
PINHEIRO - Vai rancoroso?
VENÂNCIO - Ora, qual! Até à hora do jantar.
PINHEIRO - Há de desculpar-me, não janto em casa. Mas considere-se com a
mesma liberdade.  (Sai Venâncio. Entra Lulu).


CENA IV

Pinheiro, Lulu

LULU - Viva, primo!
PINHEIRO - Como estás, Lulu?
LULU - Meu Deus, que cara feia!
PINHEIRO - Pois é a que trago sempre.
LULU - Não é, não, senhor; a sua cara de costume é uma cara amável; essa é de afugentar a gente. Deu agora para andar arrufado com sua mulher!
PINHEIRO - Mau!
LULU - Escusa de zangar-se também comigo. O primo é um bom marido; a prima é uma excelente esposa; ambos formam um excelente casal. É bonito andarem amuados, sem se olharem nem se falarem? Até parece namoro!
PINHEIRO - Ah! tu namoras assim?
LULU - Eu não namoro.
PINHEIRO - Com essa idade?
LULU - Pois então! Mas escute: estes arrufos vão continuar?
PINHEIRO - Eu sei lá.
LULU - Sabe, sim. Veja se isto é bonito na lua de mel; ainda não há cinco meses que se casaram.
PINHEIRO - Não há, não. Mas a data não vem ao caso. A lua de mel ofuscou-se; é alguma nuvem que passa; deixa-la passar. Queres que eu faça como aquele doido que, ao enublar-se o luar, pedia a Júpiter que espevitasse o candeeiro? Júpiter é independente, e me apagaria de todo o luar, como fez com o doido. Aguardemos antes que algum vento sopre do norte, ou do sul, e venha dissipar a passageira sombra.
LULU - Pois sim! Ela é norte, o primo é o sul; faça com que o vento sopre do sul.
PINHEIRO - Não, senhora, há de soprar do norte.
LULU - Capricho sem graça!
PINHEIRO - Queres saber de uma coisa, Lulu? Estou pensando que és uma brisazinha do norte encarregada de fazer clarear o céu.
LULU - Oh! nem por graça!
PINHEIRO - Confessa, Lulu!
LULU - Posso ser uma brisa do sul, isso sim!
PINHEIRO - Não terás essa glória.
LULU - Então o primo é caprichoso assim?
PINHEIRO - Caprichos? Ousas tu, posteridade de Eva, falar de caprichos a mim, posteridade de Adão!
LULU - Oh!...
PINHEIRO - Tua prima é uma caprichosa. De seus caprichos nasceram estas diferenças entre nós. Mas para caprichosa, caprichoso: contrafiz-me, estudei no código feminino meios de pôr os pés à parede, e tornei-me de antes quebrar que torcer. Se dia não der um passo, também eu não dou.
LULU - Pois eu estendo a mão direita a um e a esquerda a outro, e os aproximarei.
PINHEIRO - Queres ser o anjo da reconciliação?
LULU - Tal qual.
PINHEIRO - Contanto que eu não passe pelas forcas caudinas.
LULU - Hei de fazer as coisas airosamente.
PINHEIRO - Insistes nisso? Eu podia dizer que era ainda um capricho de mulher. Mas não digo, não, chamo antes afeição e dedicação.


CENA V

Pinheiro, Lulu, Elisa

LULU (baixo) - Olhe, aí está ela!
PINHEIRO (baixo) - Deixa-a.
ELISA - Andava à tua procura, Lulu.
LULU - Para que, prima?
ELISA - Para me dares uma pouca de lã.
LULU - Não tenho aqui; vou buscar.
PINHEIRO - Lulu!
LULU - O que é?
PINHEIRO (baixo) - Dize à tua prima que eu janto fora.
LULU (indo à Elisa, baixo) - O primo janta fora.
ELISA (baixo) - Se é por ter o que fazer, podemos esperar.
LULU (a Pinheiro, baixo) - Se é por ter o que fazer, podemos esperar.
PINHEIRO (baixo) - É um convite.
LULU (alto) - É um convite.
ELISA (alto) - Ah! se é um convite pode ir; jantaremos sós.
PINHEIRO (levantando-se) - Consentirá, minha senhora, que lhe faça uma observação: mesmo sem a sua licença, eu podia ir!
ELISA - Ah! é claro! Direito de marido...  Quem lho contesta?
PINHEIRO - Havia de ser engraçada a contestação!
ELISA - Mesmo muito engraçada!
PINHEIRO - Tanto quanto foi ridícula a licença.
LULU - Primo!
PINHEIRO (a Lulu) - Cuida das tuas novelas! Vai encher a cabeça de romantismo, é moda; colhe as idéias absurdas que encontrares nos livros, e depois faz da casa de teu marido a cena do que houveres aprendido com as leituras: é também moda. (Sai arrebatadamente).


CENA VI
Lulu, Elisa

LULU - Como está o primo!
ELISA - Mau humor, há de passar!
LULU - Sabe como passava depressa? Pondo fim a estes amuos.
ELISA - Sim, mas cedendo ele.
LULU - Ora, isso é teima!
ELISA - É dignidade!
LULU - Passam dias sem se falarem, e, quando se falam, é assim.
ELISA - Ah! isto é o que menos cuidado me dá. Ao principio fiquei amofinada, e devo dizê-lo, chorei. São coisas estas que só se confessam entre mulheres. Mas hoje vou fazer o que as outras fazem: curar pouco das torturas domesticas. Coração à larga, minha filha, ganha-se o céu, e não se perde a terra.
LULU - Isso é zanga!
ELISA - Não é zanga, é filosofia. Há de chegar o teu dia, deixa estar. Saberás então quanto vale a ciência do casamento.
LULU - Pois explica, mestra.
ELISA - Não; saberás por ti mesma. Quero, entretanto, instruir-te de uma coisa. Não lhe ouviste falar no direito? É engraçada a história do direito! Todos os poetas concordam em dar às mulheres o nome de anjos. Os outros homens não se atrevem a negar, mas dizem consigo: "Também nós somos anjos!" Nisto há sempre um espelho ao lado, que lhes faz ver que, para anjos faltam-lhes... asas! Asas! asas! a todo o custo. E arranjam-nas; legítimas ou não, pouco importa. Essas asas os levam a jantar fora, a dormir fora, muitas vezes a amar fora. A essas asas chamam enfaticamente: o nosso direito!
LULU - Mas, prima, as nossas asas?
ELISA - As nossas? Bem se vê que és inexperiente. Estuda, estuda, e hás de achá-las.
LULU - Prefiro não usar delas.
ELISA - Hás de dizer o contrário quando for ocasião. Meu marido lá bateu as suas; o direito de jantar fora! Caprichou em não levar-me à casa de minha madrinha; é ainda o direito. Daqui nasceram os nossos arrufos, arrufos sérios. Uma santa zangar-se-ia como eu. Para caprichoso, caprichosa!
LULU - Pois sim! mas estas coisas vão dando na vista; já as pessoas que freqüentam nossa casa têm reparado; o Venâncio Alves não me deixa sossegar com as suas perguntas.
ELISA - Ah! sim?
LULU - Que rapaz aborrecido, prima!
ELISA - Não acho!
LULU - Pois eu acho: aborrecido com as suas afetações!
ELISA - Como aprecias mal! Ele fala com graça e chama-o afetado?...
LULU - Que olhos os seus, prima!
ELISA (indo ao espelho) - São bonitos?
LULU - São maus.
ELISA - Em que, minha filósofa?
LULU - Em verem o anverso de Venâncio Alves e o reverso do primo.
ELISA - És uma tola.
LULU - Só?
ELISA - E uma descomedida.
LULU - É porque os amo a ambos. E depois...
ELISA - Depois, o que?
LULU - Vejo no Venâncio Alves um arzinho de pretendente.
ELISA - À tua mão direita?
LULU - À tua mão esquerda.
ELISA - Oh!
LULU - É coisa que se adivinha... (Ouve-se um carro). Aí está o homem.
ELISA Vai recebê-lo. (Lulu vai até à porta. Elisa chega-se a um espelho e compõe o toucado).


CENA VII
Elisa, Lulu, Venâncio

LULU - O Sr. Venâncio Alves chega a propósito; falávamos na sua pessoa.
VENÂNCIO - Em que ocupava eu a atenção de tão gentis senhoras?
LULU - Fazíamos o inventário das suas qualidades.
VENÂNCIO - Exageravam-me o cabedal, já sei.
LULU - A prima dizia: "Que moço amável é o Sr. Venâncio Alves!"
VENÂNCIO - Ah! e a senhora?
LULU - Eu dizia: "Que moço amabilíssimo é o Sr. Venâncio Alves!"
VENÂNCIO - Dava-me o superlativo. Não me cai no chão esta atenção gramatical.
LULU - Eu sou assim: estimo ou aborreço no superlativo. Não é, prima?
ELISA (contrariada) - Eu sei lá!
VENÂNCIO - Como deve ser triste cair-lhe no desagrado!
LULU - Vou avisando, é o superlativo.
VENÂNCIO - Dou-me por feliz. Creio que lhe cai em graça...
LULU - Caiu! Caiu! Caiu!
ELISA - Lulu, vai buscar a lã.
LULU - Vou prima, vou. (Sai correndo).


CENA VIII
Venâncio, Elisa

VENÂNCIO - Voa qual uma andorinha esta moça!
ELISA - É próprio da idade.
VENÂNCIO - Vou sangrar-me...
ELISA - Hein!
VENÂNCIO - Sangrar-me em saúde contra uma suspeita sua.
ELISA - Suspeita?
VENÂNCIO - Suspeita de haver-me adiantado o meu relógio.
ELISA (rindo) - Posso crê-lo.
VENÂNCIO - Estará em erro. Olhe, são duas horas; confronte com o seu: duas horas.
ELISA - Pensa que acreditei seriamente?
VENÂNCIO - Vim mais cedo e de passagem. Quis antecipar-me aos outros no cumprimento de um dever. Os antigos, em prova de respeito, depunham aos pés dos deuses grinaldas e festões; o nosso tempo, infinitamente prosaico, só nos permite oferendas prosaicas; neste álbum ponho eu o testemunho do meu júbilo pelo dia de hoje.
ELISA - Obrigada. Creio no sentimento que o inspira e admiro o gosto da escolha.
VENÂNCIO - Não é a mim que deve tecer o elogio.
ELISA - Foi gosto de quem o vendeu?
VENÂNCIO - Não, minha senhora, eu próprio o escolhi; mas a escolha foi das mais involuntárias; tinha a sua imagem na cabeça e não podia deixar de acertar.
ELISA - É uma fineza de quebra. (Folheia o álbum).
VENÂNCIO - É por isso que me vibra um golpe?
ELISA - Um golpe?
VENÂNCIO - É tão casta que não há de calcular comigo; mas as suas palavras são proferidas com uma indiferença que eu direi instintiva.
ELISA - Não creia...
VENÂNCIO - Que não creia na indiferença?
ELISA - Não... Não creia no cálculo...
VENÂNCIO - Já disse que não. Em que que devo crer seriamente?
ELISA - Não sei...
VENÂNCIO - Em nada, não lhe parece?
ELISA - Não reza a história de que os antigos, ao depositarem as suas oferendas, apostrofassem os deuses.
VENÂNCIO - É verdade: este uso é do nosso tempo.
ELISA - Do nosso prosaico tempo.
VENÂNCIO - A senhora ri? Riamos todos! Também eu rio e da melhor vontade.
ELISA - Pode rir sem temor. Acha que sou deusa? Mas os deuses já se foram. Estátua, isto sim.
VENÂNCIO - Será estátua. Não me inculpe, nesse caso, a admiração.
ELISA - Não inculpo, aconselho.
VENÂNCIO (repoltreando-se) - Foi excelente esta idéia do divã. É um consolo para quem está cansado, e quando à comodidade junta o bom gosto, como este, então é ouro sobre azul. Não acha engenhoso, D. Elisa?
ELISA - Acho.
VENÂNCIO - Devia ser inscrito entre os beneméritos da humanidade o autor disto. Com trastes assim, e dentro de uma casinha de campo, prometo ser o mais sincero anacoreta que jamais fugiu às tentações do mundo. Onde comprou este?
ELISA - Em casa do Costrejean.
VENÂNCIO - Comprou uma preciosidade.
ELISA - Com outra que está agora por cima, e que eu não comprei, fazem duas, duas preciosidades.
VENÂNCIO - Disse muito bem! É tal o conchego que até se podem esquecer as horas... É verdade, que horas são? Duas e meia. A senhora dá-me licença?
ELISA - Já se vaI?
VENÂNCIO - Até à hora do jantar.
ELISA - Olhe, não me queira mal.
VENÂNCIO - Eu, mal! E por que?
ELISA - Não me obrigue a explicações inúteis.
VENÂNCIO - Não obrigo, não. compreendo de sobejo a sua intenção. Mas, francamente, se a flor está alta para ser colhida, é crime aspirar-lhe de longe o aroma e adorá-la?
ELISA - Crime não é.
VENÂNCIO - São duas e meia. Até à hora do jantar.


CENA IX
Venâncio, Elisa, Lulu

LULU - Sai com a minha chegada?
VENÂNCIO - Ia sair.
LULU - Até quando?
VENÂNCIO - Até à hora do jantar.
LULU - Ah! janta conosco?
ELISA - Sabes que faço anos, e esse dia é o dos amigos.
LULU - É justo, é justo
VENÂNCIO - Até logo.


CENA X
Lulu, Elisa

LULU - Oh! teve presente!
ELISA - Não achas de gosto?
LULU - Não tanto.
ELISA - É prevenção. Suspeitas que é do Venâncio Alves?
LULU - Atinei logo.
ELISA - Que tens contra esse moço?
LULU - Já to disse.
ELISA - É mau deixar-se ir pelas antipatias.
LULU - Antipatias não tenho.
ELISA - Alguém sobe.
LULU - Há de ser o primo.
ELISA - Ele!  (Sai).


CENA XI
Pinheiro, Lulu

LULU - Viva! está mais calmo?
PINHEIRO - Calmo sempre, menos nas ocasiões em que és... indiscreta.
LULU - Indiscreta!
PINHEIRO - Indiscreta, sim, senhora! Para que veio aquela exclamação quando eu falava com Elisa?
LULU - Foi porque o primo falou de um modo...
PINHEIRO - De um modo, que é o meu modo, que é modo de todos os maridos contrariados.
LULU - De um modo que não é o seu, primo. Para que fazer-se mau quando é
bom? Pensa que não se percebe quanto lhe custa contrafazer-se?
PINHEIRO - Vais dizer que sou um anjo!
LULU - O primo é um excelente homem, isso sim. Olhe, sou importuna, e hei de sê-lo até vê-los desamuados.
PINHEIRO - Ora, prima, para irmã de caridade, és muito criança. Dispenso os teus conselhos e os teus serviços.
LULU - É um ingrato.
PINHEIRO - Serei.
LULU - Homem sem coração.
PINHEIRO - Quanto a isso, é questão de fato; põe aqui a tua mão, não sentes bater? É o coração.
LULU - Eu sinto um charuto.
PINHEIRO - Um charuto? Pois é isso mesmo. Coração e charuto são símbolos um do outro; ambos se queimam e se desfazem em cinzas. Olha, este charuto, sei eu que o tenho para fumar; mas o coração, esse creio que já está todo no cinzeiro.
LULU - Sempre a brincar!
PINHEIRO - Achas que devo chorar?
LULU - Não, mas...
PINHEIRO - Mas o que?
LULU - Não digo, é uma coisa muito feia.
PINHEIRO - Coisas feias na tua boca, Lulu!
LULU - Muito feia.
PINHEIRO - Não há de ser, dize.
LULU - Demais, posso parecer indiscreta.
PINHEIRO - Ora, qual; alguma coisa de meu interesse?
LULU - Se é!
PINHEIRO - Pois, então, não és indiscreta!
LULU - Então, quantas caras tem a indiscrição?
PINHEIRO - Duas.
LULU - Boa moral!
PINHEIRO - Moral à parte. Fala: o que é?
LULU - Que curioso! É uma simples observação; não lhe parece que é mau desamparar a ovelha, havendo tantos lobos, primo?
PINHEIRO - Onde aprendeste isso?
LULU - Nos livros que me dão para ler.
PINHEIRO - Estás adiantada! E já que sabes tanto, falarei. como se falasse a um livro. Primeiramente, eu não desamparo; depois, não vejo lobos.
LULU - Desampara, Sim!
PINHEIRO - Não estou em casa?
LULU - Desampara o coração.
PINHEIRO - Mas, os lobos?...
LULU - Os lobos vestem-se de cordeiros e apertam a mão ao pastor, conversam com ele, sem que deixem de olhar furtivamente para a ovelha mal guardada.
PINHEIRO - Não há nenhum.
LULU - São assíduos; visitas sobre visitas; muita zumbaia, muita atenção, mas lá por dentro a ruminarem coisas más.
PINHEIRO - Ora, Lulu, deixa-te de tolices.
LULU - Não digo mais nada. Onde foi Venâncio Alves?
PINHEIRO - Não sei. Ali está um que não há de ser acusado de lobo.
LULU - Os lobos vestem-se de cordeiros.
PINHEIRO - O que é que dizes?
LULU - Eu não digo nada. Vou tocar piano. Quer ouvir um noturno ou prefere uma polca?
PINHEIRO - Lulu, ordeno-lhe que fale!
LULU - Para que? para ser indiscreta?
PINHEIRO - Venâncio Alves?...
LULU - É um tolo, nada mais. (Sai. Pinheiro fica pensativo. Vai à mesa e vê o álbum)


CENA XII
Pinheiro, Elisa

PINHEIRO - Há de desculpar-me, mas creio não ser indiscreto, desejando saber com que sentimento recebeu este álbum.
ELISA - Com o sentimento com que se recebem álbuns.
PINHEIRO - A resposta em nada me esclarece.
ELISA - Há então sentimentos para receber álbuns, e há um com que eu deveria receber este?
PINHEIRO - Devia saber que há.
ELISA - Pois... recebi com esse.
PINHEIRO - A minha pergunta poderá parecer indiscreta, mas...
ELISA - Oh! indiscreta, não!
PINHEIRO - Deixe, minha senhora, esse tom sarcástico, e veja bem que eu falo sério.
ELISA - Vejo isso. Quanto à pergunta, está exercendo um direito.
PINHEIRO - Não lhe parece que seja um direito este de investigar as intenções dos pássaros que penetram em minha seara, para saber se são daninhos?
ELISA - Sem dúvida. Ao lado desse direito, está o nosso dever, dever das searas, de prestar-se a todas as suspeitas.
PINHEIRO - É inútil a argumentação por esse lado: os pássaros cantam e as cantigas deleitam.
ELISA - Está falando sério?
PINHEIRO - Muito sério.
ELISA - Então consinta que faça contraste: eu rio-me.
PINHEIRO - Não me tome por um mau sonhador de perfídias; perguntei, porque estou seguro de que não são muito santas as intenções que trazem à minha casa Venâncio Alves.
ELISA - Pois eu nem suspeito...
PINHEIRO - Vê o céu nublado e as águas turvas: pensa que é azada ocasião para pescar.
ELISA - Está feito, é de pescador atilado!
PINHEIRO - Pode ser um mérito a seus olhos, minha senhora; aos meus é um vício de que o pretendo curar, arrancando-lhe as orelhas.
ELISA - Jesus! está com intenções trágicas!
PINHEIRO - Zombe ou não, há de ser assim.
ELISA - Mutilado ele, que pretende fazer da mesquinha Desdêmona?
PINHEIRO - Conduzi-la de novo ao lar paterno.
ELISA - Mas, afinal de contas, meu marido, obriga-me a falar também seriamente.
PINHEIRO - Que tem a dizer?
ELISA - Fui tirada há meses da casa de meu pai para ser sua mulher; agora, por um pretexto frívolo, leva-me de novo ao lar paterno. Parece-lhe que eu seja uma casaca que se pode tirar por estar fora de moda?
PINHEIRO - Não estou para rir, mas digo-lhe que antes fosse uma casaca.
ELISA - Muito obrigada!
PINHEIRO - Qual foi a casaca que já me deu cuidados? Por ventura quando saio com a minha casaca não vou descansado a respeito dela? Não sei eu perfeitamente que ela não olha complacente para as costas alheias e fica descansada nas minhas?
ELISA - Pois tome-me por uma casaca. Vê em mim alguns salpicos?
PINHEIRO - Não, não vejo. Mas vejo a rua cheia de lama e um carro que vai passando; e nestes casos, como não gosto de andar mal asseado, entro em um corredor, com a minha casaca, à espera de que a rua fique desimpedida.
ELISA - Bem. Vejo que quer a nossa separação temporária... até que passe o
carro. Durante esse tempo como pretende andar? Em mangas de camisa?
PINHEIRO - Durante esse tempo não andarei, ficarei em casa.
ELISA - Oh! suspeita por suspeita! Eu não creio nessa reclusão voluntária.
PINHEIRO - Não crê? E por que?
ELISA - Não creio, por mil razões.
PINHEIRO - Dê-me uma, e fique com as novecentas e noventa e nove.
ELISA - Posso dar-lhe mais de uma e até todas. A primeira é a simples dificuldade de conter-se entre as quatro paredes desta casa.
PINHEIRO - Verá se posso.
ELISA - A segunda é que não deixará de aproveitar o isolamento para ir ao alfaiate provar outras casacas.
PINHEIRO - Oh!
ELISA - Para ir ao alfaiate é preciso sair; quero crer que não fará vir o alfaiate à casa.
PINHEIRO - Conjecturas suas. Reflita, que não está dizendo coisas assizadas. Conhece o amor que lhe tive e lhe tenho, e sabe de que sou capaz. Mas, voltemos ao ponto de partida. Este livro pode nada significar e significar muito. (Folheia). Que responde?
ELISA - Nada.
PINHEIRO - Oh! que é isto? É a letra dele.
ELISA - Não tinha visto.
PINHEIRO - É talvez uma confidência. Posso ler?
ELISA - Por que não?
PINHEIRO (lendo) - "Se me privas dos teus aromas, ó rosa que foste abrir sobre um rochedo, não podes fazer com que eu te não ame, contemple e abençoe!" Como acha isto?
ELISA - Não sei.  
PINHEIRO - Não tinha lido?
ELISA (sentando-se) - Não.
PINHEIRO - Sabe quem é esta rosa?
ELISA - Cuida que serei eu?
PINHEIRO - Parece. O rochedo sou eu. Onde vai ele desencavar estas figuras.
ELISA - Foi talvez escrito sem intenção...
PINHEIRO - Ai! foi...  Ora, diga, é bonito isto? Escreveria ele se não houvesse esperanças?
ELISA - Basta. Tenho ouvido. Não quero continuar a ser alvo de suspeitas. Esta frase é intencional; ele viu as águas turvas... De quem a culpa? Dele ou sua? Se as não houvesse agitado, elas estariam plácidas e transparentes como dantes.
PINHEIRO - A culpa é minha?
ELISA - Dirá que não é. Paciência. Juro-lhe que não sou cúmplice nas intenções deste presente.
PINHEIRO - Jura?
ELISA - Juro.
PINHEIRO - Acredito. Dente por dente, Elisa, como na pena de Talião. Aqui tens a minha mão em prova de que esqueço tudo.
ELISA - Também eu tenho a esquecer e esqueço.


CENA XIII
Elisa, Pinheiro, Lulu

LULU - Bravo! voltou o bom tempo?
PINHEIRO - Voltou.
LULU - Graças a Deus! De que lado soprou o vento?
PINHEIRO - De ambos os lados.
LULU - Ora bem!
ELISA - Pára um carro.
LULU (vai à janela) - Vou ver.
PINHEIRO - Há de ser ele.
LULU (vai à porta) - Entre, entre.


CENA XIV
Lulu, Venâncio, Pinheiro, Elisa

PINHEIRO (baixo à Elisa) - Poupo-lhe as orelhas, mas hei de tirar desforra...
VENÂNCIO - Não faltei...  Oh! não foi jantar fora?
PINHEIRO - Não. A Elisa pediu-me que ficasse...
VENÂNCIO (com uma careta) - Muito estimo.
PINHEIRO - Estima? Pois não é verdade?
VENÂNCIO - Verdade o que?
PINHEIRO - Que tentasse perpetuar as hostilidades entre a potência marido e a potência mulher?
VENÂNCIO - Não percebo...
PINHEIRO - Ouvi falar de uma conferência e de umas notas... uma intervenção da sua parte na dissidência de dois estados unidos pela natureza e pela lei; gabaram-me os seus meios diplomáticos, e as suas conferências repetidas, e até veio parar às minhas mãos este protocolo, tornado agora inútil, e que eu tenho a honra de depositar em suas mãos.
VENÂNCIO - Isto não é um protocolo... é um álbum... não tive intenção...
PINHEIRO - Tivesse ou não, arquive o volume depois de escrever nele - que a potência Venâncio Alves não entra na santa-aliança.
VENÂNCIO - Não entra?... mas creia... A senhora... me fará justiça.
ELISA - Eu? Eu entrego-lhe as credenciais.
LULU - Aceite, olhe que deve aceitar.
VENÂNCIO - Minhas senhoras, Sr. Pinheiro.  (Sai).
TODOS - Ah! Ah! Ah!
LULU - O jantar está na mesa. Vamos celebrar o tratado de paz.